segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O Pão Nosso de Cada Dia


Abri os olhos e quedei-me sentado em um banheiro químico. Atônito. As paredes de plástico queimavam, o sol lá fora não desistia. Sim, o próximo passo seria levantar, afivelar o cinto, destravar a porta e sair, mas, antes, algumas considerações pudicas que muito excitam os concursos nacionais e seus jurados e demais afins.
Sozinho como uma araucária em Recife. Procuro uma janela para me compadecer dos outros lá fora, com uma chuva fina escorrendo no vidro, observando as caras sem rosto em calçadas sujas, as cabeças despencadas em passos que se arrastam, já que o fim de tarde sempre me trouxe uma enorme melancolia asfáltica nesta pequena quitinete centro-urbana em que sobrevivo, e é disso que eu estou falando. Epifanias de cor azul by Pfizer, se é que ganharei alguns pontos com o intuito. Ou gozos. Conjunto lírico, aliás. Aquele ali, de nome "C", gostou (tá balançando a cabeça).
Nunca descobrirei do que é feita a solução química depositada no fundo do buraco, também chamada de substancia desodorizante a 5%. Um mistério. Não sei sua cor, nem se é caustica ou ácida, também não sei se tem pra vender na Disapel da quinze. Deve ter. O importante é que ela evita a proliferação bacteriana e suaviza o odor forte, mas chega de biologia! Os supracitados não tem capacidade intelectual de julgar tais afirmações cientificas em prosa ficcional e o pão nosso de cada dia, depois de morto, causa asco, e rancor, ainda que desodorizado a cinco por cento depois do flopt.
Agora, a gralha-azul (tem um chorinho de viola pra acompanhar?). De índigas penas, ave símbolo de nossas plagas, és a mais bela de nossos pinheirais. Inocente, tímida. Que pavarótico canto tens tu, que puccinicas notas alcança, derrete os corações mais rochosos e semeia a harmonia entre os discursos, equalizando brados e sussurros. (Será que eles usam carimbo na capa dos selecionados? Ou jogam para o alto e pegam no ar, como fazia a Xuxa no sorteio das cartinhas?).
O papel acabou e retiro o rolo vazio para doar à reciclagem (sou um homem educado, entretanto). Achato, dobro, coloco no bolso. O calor aumenta lá dentro. Vou minimizando a diarreia com conversas e afagos circulares sentido horário em volta do umbigo. Respiro fundo. A diarreia parece ser uma falácia, já que o narrador é desonesto. Sento, pois estou cansado, é isso. Respiro fundo. Poderia ser no Louvre, no Morumbi, na amurada do Layde Gomes, sentido Parintins-Manaus. Mas não. Pela glória dos céus, alegra-me as pupilas o interior de um banheiro químico. Giro o trinco e abro a porta. Uma vasta plantação de soja, a perder de vista. Sem me levantar, com enorme dificuldade, puxo a porta com o pé e fecho novamente. Acho até mesmo que vi uma picape levantando a poeira do horizonte, por isso terei pesadelos. A imensidão do campo me aliena, prefiro a cabine. A originalidade moderna do plástico pré-moldado, a caixa de detritos lá fora, dezenove litros de água para um de solução desodorizante (Amigo! Amigo! Já não mandei parar a porra do chorinho?!). O buraco bem projetado em que descansa minhas nádegas, e não me vou. Ficarei. Vou esperar sentado o caminhão com a bomba de sucção aspirar todo o detrito.