sábado, 26 de janeiro de 2013

Chita



Por mais que os microprodutores rurais estejam certos em suas reivindicações, e por mais que o governo diga que investe, investe sim na agricultura familiar, na produção de orgânicos e nos chiqueirinhos de subsistência, mesmo assim, com a palavra honrada do ministro, com cursos de capacitação oferecidas pela EMATER, apoio científico e pesquisa oferecido pela EMBRAPA, e com dezenas de medidas provisórias assinadas, com foices e enxadas erguidas diante do congresso nacional, com músicas e discursos calorosos, com gente humilde pagando fortunas por uma garrafa de água naquele sol escaldante do planalto central, após dias de viagem em ônibus sem ar-condicionado, tudo em nome da luta, tudo em nome do plantio em pequena escala e do alimento saudável, apesar de todo esse movimento em torno da causa, apareceu uma vaca no meio do caminho.
Tomazoni, conduzindo uma carroça, puxado por dois baios, não pode continuar. Ao seu lado esquerdo, uma ribanceira de dar medo. À direita, um gigantesco paredão de pedra, com galhos e cipós tentando fugir da dureza mineral. Estrada interditada, acidente na pista, obras a duzentos metros, a placa da concessionária não falava nada sobre vacas no meio do caminho. É culpa do governo, estas licitações mal fiscalizadas. PEDÁGIO A 1.000 METROS.
Uma vaca no meio da estrada de chão. E já não se pagam impostos suficientes?! Mais essa agora... Uma vaca. Poderia voltar, quem sabe? Olhar para trás, meia volta, retornar. Nunca! Em frente, sempre em frente, pro diabo quem desiste, porca madona! Tomazoni não se mixava por pouco. Uma vaca. Mascando capim, olhando com arrogância. E, atrás da vaca, com masculino ar de superioridade, impondo chifres ao céu e autoridade de território ocupado, nenhum boi.
Abandonou a carroça, os cavalos, toda a carga de produtos perecíveis de origem 100% orgânica, e subiu por um cipó. Único caminho digno. Poderia ter levado um tomate, poderia, mas... Já que não se vai por terra, é por transporte aéreo mesmo. Calejando a palma, cortando polegares, armazenando seiva sob a unha, rasgando o rosto, coçando a pele. Foi assobiando “Sad but True”, do Metallica, e a taxa de embarque era uma mentira bem contada. Por quem, isso já não se sabe. Força nos braços. Só a roupa do corpo e uma bolsa de couro cru, estonada, nenhum excesso de bagagem.
No fim do cipó, um tronco grosso. Podia-se construir uma casa nele. Firme, indiferente. E a vaca mascando capim, soprando cuspe, tentando uma bola Ploc sabor tutti-frutti, olhando o anão com pálpebras de interrogação, analisando de modo campeiro aquela realidade diminuta (lá no casebre ao longe, fumacinha saindo do telhado e arroz-carreteiro no fogão à lenha). Nada menos do que dezessete borrachudos trouxeram cataporas esporádicas pelos calcanhares e pescoço. Foi acusado de sarampo. Outros o acusaram de lepra (e coisas piores). Mantido em quarentena, julgado, convocado a prestar esclarecimentos no castelo. Como já fora herói, prestando importantes serviços militares, teve o caso arquivado e liberado. O processo correu mais rápido do que o Green Card do John Lennon.
Para Tomazoni, aquela vaca intencionava compor uma bossa-nova new millenium onde cantaria que "isso não vai em mim, não vai em mim, não vai". Algo despreocupado e bunitim, sem diarreias e impactações, que cantasse essa nova alegria do povo, onde "aaaaaaa felicidade quando empresta vem à mesa, com tela plãããã-naaaaaa". Zen cristão neopentecostal, nossa alegria, em casa, lar doce lar, sofazim, comigo assim tranquilo e só comigo, só comigo, só eu, só meu umbigo comigo, agora. Tomazoni intencionava um costelão doze horas, e leite para a horta de radicci.
Voltando. Em meio aos cipós e ramagens e galhos que guardam folhagens e espinhos, às vezes, e sem falar das formigas e lacraias, cabeludos e larvas, e esporos e fungos e doenças da pele vegetal, verrugas que creme nenhum pode curar, desbrava um declive sem terra de volta ao chão, solito e sem bagagem, por trás da vaca, diante do rabo abanador, onde não existe queixa ou desagrado, submundo dos carrapatos inalcançáveis, no anti-tumulto social desta geração (aqui e agora nada acontece, nada acontece). Eis que surge um macaco, quase invisível, modesto em seus gestos de autopromoção, coçar do pelo com finalidade de antimerchandising pessoal, enfim: quieto. Logo tomaram amizade: Tomazoni e o macaco nu. A metáfora de Gaia em formato corpóreo. O sol indiferente se escondia entre as nuvens (e foi quando soprou um vento gelado). O macaco amigo tentava arrancar as bolachas Maria da gibeira de Tomazoni, não tinha escrúpulos.
Uma vaca no meio do caminho. Uma vaca atrás de Tomazoni, que caminhava tranquilo de mãos dadas com o macaco.