Por mais que os
microprodutores rurais estejam certos em suas reivindicações, e por mais que o
governo diga que investe, investe sim na agricultura familiar, na produção de
orgânicos e nos chiqueirinhos de subsistência, mesmo assim, com a palavra
honrada do ministro, com cursos de capacitação oferecidas pela EMATER, apoio
científico e pesquisa oferecido pela EMBRAPA, e com dezenas de medidas
provisórias assinadas, com foices e enxadas erguidas diante do congresso
nacional, com músicas e discursos calorosos, com gente humilde pagando fortunas
por uma garrafa de água naquele sol escaldante do planalto central, após dias
de viagem em ônibus sem ar-condicionado, tudo em nome da luta, tudo em nome do
plantio em pequena escala e do alimento saudável, apesar de todo esse movimento
em torno da causa, apareceu uma vaca no meio do caminho.
Tomazoni, conduzindo
uma carroça, puxado por dois baios, não pode continuar. Ao seu lado esquerdo,
uma ribanceira de dar medo. À direita, um gigantesco paredão de pedra, com
galhos e cipós tentando fugir da dureza mineral. Estrada interditada, acidente
na pista, obras a duzentos metros, a placa da concessionária não falava nada
sobre vacas no meio do caminho. É culpa do governo, estas licitações mal
fiscalizadas. PEDÁGIO A 1.000 METROS.
Uma vaca no meio da
estrada de chão. E já não se pagam impostos suficientes?! Mais essa agora...
Uma vaca. Poderia voltar, quem sabe? Olhar para trás, meia volta, retornar.
Nunca! Em frente, sempre em frente, pro diabo quem desiste, porca madona!
Tomazoni não se mixava por pouco. Uma vaca. Mascando capim, olhando com
arrogância. E, atrás da vaca, com masculino ar de superioridade, impondo
chifres ao céu e autoridade de território ocupado, nenhum boi.
Abandonou a carroça, os
cavalos, toda a carga de produtos perecíveis de origem 100% orgânica, e subiu
por um cipó. Único caminho digno. Poderia ter levado um tomate, poderia, mas...
Já que não se vai por terra, é por transporte aéreo mesmo. Calejando a palma,
cortando polegares, armazenando seiva sob a unha, rasgando o rosto, coçando a
pele. Foi assobiando “Sad but True”, do Metallica, e a taxa de embarque era uma
mentira bem contada. Por quem, isso já não se sabe. Força nos braços. Só a
roupa do corpo e uma bolsa de couro cru, estonada, nenhum excesso de bagagem.
No fim do cipó, um
tronco grosso. Podia-se construir uma casa nele. Firme, indiferente. E a vaca
mascando capim, soprando cuspe, tentando uma bola Ploc sabor tutti-frutti,
olhando o anão com pálpebras de interrogação, analisando de modo campeiro
aquela realidade diminuta (lá no casebre ao longe, fumacinha saindo do telhado
e arroz-carreteiro no fogão à lenha). Nada menos do que dezessete borrachudos
trouxeram cataporas esporádicas pelos calcanhares e pescoço. Foi acusado de
sarampo. Outros o acusaram de lepra (e coisas piores). Mantido em quarentena,
julgado, convocado a prestar esclarecimentos no castelo. Como já fora herói,
prestando importantes serviços militares, teve o caso arquivado e liberado. O
processo correu mais rápido do que o Green Card do John Lennon.
Para Tomazoni, aquela
vaca intencionava compor uma bossa-nova new millenium onde cantaria que
"isso não vai em mim, não vai em mim, não vai". Algo despreocupado e
bunitim, sem diarreias e impactações, que cantasse essa nova alegria do povo,
onde "aaaaaaa felicidade quando empresta vem à mesa, com tela plãããã-naaaaaa".
Zen cristão neopentecostal, nossa alegria, em casa, lar doce lar, sofazim, comigo
assim tranquilo e só comigo, só comigo, só eu, só meu umbigo comigo, agora.
Tomazoni intencionava um costelão doze horas, e leite para a horta de radicci.
Voltando. Em meio aos
cipós e ramagens e galhos que guardam folhagens e espinhos, às vezes, e sem
falar das formigas e lacraias, cabeludos e larvas, e esporos e fungos e doenças
da pele vegetal, verrugas que creme nenhum pode curar, desbrava um declive sem
terra de volta ao chão, solito e sem bagagem, por trás da vaca, diante do rabo
abanador, onde não existe queixa ou desagrado, submundo dos
carrapatos inalcançáveis, no anti-tumulto social desta geração (aqui
e agora nada acontece, nada acontece). Eis que surge um macaco, quase
invisível, modesto em seus gestos de autopromoção, coçar do pelo com finalidade
de antimerchandising pessoal, enfim: quieto. Logo tomaram amizade: Tomazoni e o
macaco nu. A metáfora de Gaia em formato corpóreo. O sol indiferente se escondia
entre as nuvens (e foi quando soprou um vento gelado). O macaco amigo tentava
arrancar as bolachas Maria da gibeira de Tomazoni, não tinha escrúpulos.
Uma vaca no meio do
caminho. Uma vaca atrás de Tomazoni, que caminhava tranquilo de mãos dadas com
o macaco.