segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Drops da Infantaria Encurtecida nº 07

  Tomazoni parte em uma missão de salvamento e após escalar a torre mais alta do castelo encontra a princesa, gorda, sorridente, tricotando.
  Polainas.
  Para os tornozelos, pois começará na academia na terça de manhã. O seu personal trainer está sentado num canto, tomando uma xícara de chá com o dedo mindinho levantado. Ele abana um sorrisinho indiscreto com sua mãozinha. Já fez a inscrição, a tatuagem, o botox, o silicone, o exame preliminar, o teste de cantada, o fone de ouvido, a capa do Ai-fone, as unhas de oncinha, a outra tatuagem, o cabelo amarrado, o tênis importado, a sobrancelha Jolly, o bigodinho brazillian de Hitler, o perfume no ombro, a calça justa, a blusa justa, a outra blusa sobreposta justa, tatuagem no punho, e faltavam, obviamente, as polainas. Um alquimista entra com uma chávena de chá e se retira, receoso. Ratos roem a roupa do rei. Tomazoni nervoseia, pois os alquimistas são discretos e silenciosos (moram bem longe dos homens).
Volte na quarta, querido, e Tomazoni se despede, pulando pela janela.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A Narrativa Roussef

  A presidente Dilma não faz literatura existencialista. Não cria personagens em conflito morando em grandes cidades, habitando apartamentos vazios e áridos pela solidão politana.
  Com a chegada dos médicos cubanos, a presidente Dilma cria um enredo provocativo, com heróis, supostos vilões vestindo-se de heróis, respostas e aventuras.
  Existe uma crise. Um ato vai tentar corrigir essa crise. A burguesia "bem-pensante" se voltará contra esse ato, em respeito à classe dos médicos. A classe reacionária usará seus instrumentos para manipular nossa admirável classe média e colocar na sua cabeça que o ato é falho, inadmissível e deplorável. A classe média, em eterno retorno, será manobrada pela sua TV das 21 horas, já que um médico descente tem que ter pele branca, cabelo branco, macho e homofóbico (ou seja, deve ser o Antônio Fagundes). O escritora inova aqui, definindo o personagem como um grupo de pessoas, não apenas um (sem falar nos VÂNDALOS, que entrará(ão) também na história).
  O médico cubano é o "professor Langdon" de O CÓDIGO DA VINCI (vou usar esse exemplo tosco, pois de nada vai adiantar eu citar Raskolnikov ou Riobaldo, já que a nossa classe média gosta de Dan Brown e Paulo Coelho). Assim como Langdon vai quebrar a moral e os bons costumes, dizendo que Jesus trepou com uma biscate e teve um filho, o Médico Cubano vai tentar quebrar as acusações com dedicação e trabalho. Não sobrarão atentados, envenenamento, clima ruim e falsas acusações nos postos de saúde, todos perpetrados, claro, por Antônio Fagundes, o fazendeiro-mor do Sírio-Libanês. Os planos venderão mais, o SUS será escrachado e o Fluminense ficará feliz com o aumento da verba do seu principal patrocinador.
  Uns chamarão de folhetim, outros chamarão de romance histórico, a verdade é que a narrativa Roussef está longe de acabar. Ou o leitor se confraterniza com o herói carismático que luta pelos plebeus, ou o expulsará de volta à sua ilha. 
  Outra visão tosca seria uma analogia com o estruturalismo. O centro da narrativa é o Médico Cubano, somente os atos do Médico Cubano, seus erros, seus acertos, e nada mais! Nada de Antônio Fagundes manobrando intrigas, nada de jornalismo reacionário, nada de politização (politização? o que tem a ver isso nesse enredo todo?). Mas deixe Umberto Eco com sua fuça em cima da obra e vamos olhar em volta. Vamos nos informar mais, vamos tentar entender a narrativa Roussef. 
  Ou, talvez, visitar um posto de saúde. E estudar medicina preventiva. Ver o contexto histórico-político-moral de uma sociedade é recomendado pela bula antes de ler a obra.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Morro Cantagalo e Mais Além - A Segunda Parte

   Final de 2002. Os atletas de cristo de 99 já eram história. E a limpa feita no time da Azenha surtira efeito: conquista da Copa do Brasil em 2001, uma quase final de Libertadores em 2002 (derrota nos pênaltis para o Olímpia), um time azeitado. O centenário do clube seria comemorado com louros e faixas.
   Porém o Sobrenatural de Almeida, de caso com o lado negro da Força, preparava sua vingança contra a sacrossanta imagem do Cristo. Isso não ia ficar assim, não ia! Era preciso o dedo erguido aos céus, e comunista aqui que fosse pra Cuba! 
   O presidente do time da Azenha somava todos os encostos da Bahia para baixo, inclusive aquele forte lá do Morro Santa Tereza. Um pé de gelo. Incompetência, brigas, a quase queda em 2003 e o reveillon em Punta del Este trazendo as piores frentes frias da história azul.
    2004 e os Atletas de Cristo (agora com sede própria (Carandiru, pavilhão 7, fundos)) contra-atacam. Sim! Não fizeram nada, apenas pediram justiça divina. Exu enclausurado. Tonturas da direção, nebulosidade, 150 mil para contratações e os salários talvez, talvez, em dia. Mandinga. Galinha preta enterrada na Praça do Papa. Vodoo. Sim, vodoo também, pois chegou um atacante panamenho, ex-presidiário, chamado Garces, depois de ter esfaqueado a mulher. Foi preso agora em 2011, quando reagiu à tiros a voz de prisão. Esse tipo de elemento compunha o grupo naquele corrente ano. Outros supostos atletas  eram Tavarelli no gol (e a lembrança não te trás arrepios?); o panamenho Baloy; Saraiva; Cocito; Ratinho; Fábio Bilica; Zulu e Rico.
   [Adendo: Saraiva foi roubado do Inter e anunciado pelo pediatra Saul Berdichevski, então vice-de-futebol, como o novo Falcão. Fábio "Birita" tinha uma amante italiana, e essa mesma causou barraco em um dos treinos.  Cocito, posteriormente, ajudou a afundar outros times. Berdichevski, em outra pérola, disse que Luciano Ratinho era melhor do que um tal meia que atuava no co-irmão chamado Nilmar. Zulu não era um jogador camaronês.]
   Um trem sem rumo, sem comando. O presidente mais perdedor de toda a história do clube, quando assumiu, mandou às favas todos os empresários, dizendo que ia tratar diretamente com os atletas. Ele se regozijava afirmando que tinha o melhor site de clube de futebol do mundo e o melhor ônibus para levar a delegação.
  O ônibus, então. 
 Essa história me foi passada dois anos atrás, no bar do Farinha, arredores da zona sul de Viamão. Uma tarde quente, o pó cobria o horizonte. O indivíduo me contou toda a história da viagem do time à Curitiba, nas últimas rodadas do campeonato (derrota de 1x0 para o Paraná, e, momentos antes da partida ter início, segundo uma testemunha ocular, Pitbul tomava um chopp na Rua 24Hrs, ao lado do hotel, acompanhado de duas moças). Não vou entrar em detalhes sobre o que acontecia no idolatrado Trovão Azul, dito cujo ônibus de dois andares, mas a farra correu solta em todo o trajeto. Um dos roupeiros, incomodado com o barulho, foi tentar dormir na poltrona 36 e seus olhos viram dois dos atletas do time se masturbando mutuamente. O horror, o horror!!
  A queda, a vergonha, o fundo do poço. Até quis largar a crônica esportiva na época. Ser correspondente internacional, travar textos nos suplementos de cultura, qualquer coisa, qualquer coisa! Ah, pro diabos o time do meu coração. Não devemos misturar as paixões, dizia um antigo professor meu. Eu era voraz em meus comentários, até estampido de tiro escutava no meio da noite. Com dirigentes não se brinca. 
  Corria o 30 de outubro, contra o Palmeiras, longe de casa (nosso estádio, interditado). O zagueiro panamenho Baloy, amigo do pistoleiro Garcês, é expulso quando ganhávamos de 2x0. Faltando 10min pro fim, o gol de empate do Palmeiras, gol de mão. O goleiro tricolor reclama e é expulso também. Bêbado, Fábio Birita vai pro gol. Quatro jogadores palmeirenses estão impedidos aos 48min do segundo tempo, um deles faz gol. Derrota. Deus, então, sorri aliviado. A queda foi decretada no dia 28 de novembro.
  Os atletas de cristo respiraram fundo, a justiça havia sido feita.
  2005 e as renegociações. Um clube falido, quebrado. As forças do bem deveriam ser trazidas de volta. Uma troca de técnico (normal, normal...) e, na madrugada da primeira partida, chega o treinador do Caxias, campeão gaúcho. El Mano de Diós, a torcida sempre idolatrava essa baboseira platina. Jogo de portões fechados, no estádio do co-irmão, dava pra se escutar o grilo embaixo das traves.
 Mas vamos nos focar nas negociações. Deus, fazendo-se representado por seu advogado, dá sinais de retomada quando não dá o penalti no Tinga, expulsa o mesmo, e o Corinthians empata com o time do Beira-Rio em 1x1. O resultado deu o título ao time de São Jorge, deixando irritado o co-irmão. Pipocam foguetes na Azenha, e eu me lembro muito bem deste jogo, assistido lá no alto do Cantagalo.
    A decisão final entre Deus e a direção fica para o nervoso 26 de Novembro, mesma data da final do Campeonato Brasileiro da Série B, o jogo que decidiria o céu ou o inferno, a subida ou a alma no purgatório, num estádio que trazia no nome todas as paradas cardíacas em corações apaixonados: Estádio dos Aflitos. O representante do clube diz que a sua instituição é laica, e tenta medir forças com a Glória Divina. Não dá outra: pênalti para o Náutico. Aos 31min do primeiro tempo. O representante do clube apela, Deus concorda. Cobrança cobrada, bola na trave. A conversa prossegue. Segundo tempo, Deus começa a desistir. Escalona é expulso. Agora temos dez em campo. Nervosismo. A Divina Providência se levanta e quer abandonar as negociações. Pênalti para o Náutico. Um jogador é expulso. Agora nosso time tem 9. Alguns jogadores vêem a morte, os demônios. O pavor toma conta. Outro jogador é expulso. Agora são 8. Vinte minutos de tensão. Mandaram embora os atletas de cristo, agora sofram as consequências. Seriam mais alguns anos de inferno. Mais um expulso. 7. O representante ora. E adianta orar agora? Brincaram com a Divindade! E foi isso mesmo que aconteceu, eu sei, eu tenho a história na mão, com exclusividade. Deus volta e senta junto à mesa. O penalti é batido e o goleiro pega. Agora são 7 contra 11. Deus fala apenas uma coisa: Anderson. O jogador leva falta. Cobra, recebe, parte pra cima de um, dois, tres, e faz o gol. O jogo termina. Mais de seis milhoes de seres vestindo mantos azuis rezam. 
  O time nunca mais deixará de ser cristão. 
  Até porque não ter religião é coisa de comunista (e o comunismo é vermelho).

sábado, 6 de abril de 2013

Considerações sobre o poema na água

   Se é pra ser igual a todo mundo meu narrador vai ser eu mesmo, escritor-alter, com crise de identidade na metrópole vermífuga, diarreia existencialista borrando fraldas de mim mesmo só pra ser igual a todo mundo.
  E só pra ser igual a todo mundo vou citar Pessoa, Guimarães, Camus, e também vou falar do humor subsubsubliminar de Foster Wallace, a festa da lagosta, que transcende a realidade e, claro, Róff, Filipe Róff, assim eu saio um pouco do academicismo, pra citar caras modernos e ser mais igual a todo mundo.
   E só pra escrever como todo mundo eu, o narrador de mim mesmo (não o escritor-alter nem o escritor que seca a louça), em primeira pessoa (aquela tabelinha dos verbos, lembra?), vou usar recursos estilísticos de primeira grandeza, porque terceira dá bronze, e defecar-lhes-ei sobre vossas cabeças meu niilismo social auto-egocentrístico marxista, só pra mim ganhar cerveja no boteco descolado e comer umas gurias tatuadas com borboleta. Escreverei diálogos com dois pontos
   - travessão
entre vô e neto, discutindo banalidades e, caindo então, em assuntos etéreos, como tempo, bibelôs, alfazema e caturritas, dizendo muito em pequenos assuntos, depois virá um fluxo de consciência, analépse, uma prolépse, e dois bolinhos de soja (a conta, por favor!).
   [Ele era assim desde pequeno. Eu falava pra mãe botar ele na escolinha de futebol, até comprei chuteira! Disse que apertava... Bota o guri pra brincar na rua, bota o guri pra atirar com a funda, mas não! Vivia enfiado naqueles livro dele... Agora inventou essa de publicar. Pra mim, coisa de boiola.]
   Escreverei no meio desta praça entorpecida de humanos, eu mesmo e meu caderninho, eu mesmo no chão do apartamento vazio. O vazio, o vazio!
   Só pra ser igual a todo mundo vou criar extensos diálogos com o propósito de parir personagens polifônicos de múltiplas identidades,  axiológicos bakhtinianos, tão diferentes quanto um surfista, um filósofo, um coletor de resíduos e um pastor (todos votarão no FHC). Só pra ser igual a todo mundo viverei uma crise sem precedentes na história do meu apartamento universitário, bolorento das lágrimas derramadas pela menina que partiu, e escreverei, escrever-lhes-ei, contarei tudo como aconteceu, em primeira pessoa, frenético, o canudinho me servirá o nescau gelado.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Morro Cantagalo e mais além

Corria o ano de 1999. O time da Azenha sofria um natural processo de reformulação da equipe, após os gloriosos anos em que ganhara a Libertadores, duas Copas do Brasil e o campeonato brasileiro. Bons jogadores haviam saído, outros chegaram e, não aprovando, foram embora. Um, em especial, se tornaria grande craque, mas não é sobre esse personagem que vou falar. Poderes aquém à minha vontade exigem que a história seja contada sobre um novo ângulo. A memória deve ser perpetuada para que não se repita a desgraça no futuro.
A Providência quis escrever em linhas tortas a pena que não borrava a correta escrita.
Esta é a triste história que narra a queda. A não menos sensacionalista história que narra como os deuses do Olimpo, altíssimos em seu júbilo e poder, empurraram uma esquadra imortal nos desfiladeiros de Termópilas.
Voltamos para 1999. Brilhava um rapaz de pouca idade, com dribles desconcertantes e gols, muitos gols. Na partida final do torneio estadual, eu mesmo pulei o fosso que separa campo da torcida para carregá-lo nos braços, após a conquista do campeonato. O destino traçava novos troféus e glórias. Porém, chora Athena, chora Apolo e também o próprio Zeus. Quatro jogadores do grupo se autodenominavam “Atletas de Cristo”, sendo que este Cristo em questão era Jesus, o filho de Deus, também chamado Arquiteto do Universo, e não o treinador da equipe, que poderia se chamar Otacílio Cristo, portanto os jogadores seriam seus atletas, os “atletas do Otacílio”, nada mais lógico, ou mesmo poderia ser o presidente da agremiação, que, não menos estranho, poderia se chamar Luis Carlos Cristo, e, portanto, os jogadores, em respeito à hierarquia, se autodenominariam “atletas do presidente”, não. Cristo era Jesus. Ponto.
Tais “atletas de Cristo”, apesar de rezarem bastante (pois eu tinha acesso aos treinamentos e era comum à estes desportistas a exaltação de sua fé), não eram os melhores jogadores do Brasil (longe disso). Romário fazia gols e só abria os braços. O craque anteriormente citado cultuava um pandeiro, e louvava pagodes nas festas de comemoração. Nada mais válido aqui do que aquele velho lugar-comum de que “se isso adiantasse, o campeonato baiano terminava empatado”. E como eram ruins... Uvas! Perebas. Nenhum santo óleo do senhor (9,90 cada frasco, na época), nem tampouco longas sessões de descarrego (às sextas, a partir das 22 hrs) colocariam aqueles “pés de cristo” na forma, não acertariam seus passes, não colocaria a pelota na gaveta. Qualquer carrinho dado por estes sujeitos era uma guerra santa, qualquer bola perdida era “em nome do senhor”, mesmo que o erro causasse gol do adversário. E causava. E a maionese da tia Carmem começou a desandar quando os gols escassearam, quando as derrotas se acumularam. A gota “d’alga” (como dizia minha bisavó Clementina) foi quando um desses atletas disse, nos microfones da Rádio Caiçara AM de Campo Bom, e eu escutei muito bem, com sobriedade jornalística (cursava então o último ano de jornalismo), sentado na varanda da minha casa, no morro Cantagalo, o seguinte: (abre aspas) A vitória não veio porque Deus não quis! (fecha aspas). Há testemunhas que ouviram o mesmo. Muitas, te digo. E a notícia se espalhou como onda de Poseidon. Ainda que suado do esforço na partida, ainda que cansado do jogo, talvez um pouco fora de si (uma cabeçada meio forte no segundo tempo mas, vá lá! Nem tinha sido grave!), nada lhe dava motivos para botar a culpa em Deus. NADA! Esta pérola poderia ser borracheada dos anais do futebol. Meu amigo, eu te pergunto: pra que o infeliz foi cagar uma blasfêmia destas?
(Adendo: Futebol e religião, duas paixões nacionais. Futebol e religião não se discutem. Misturar religião ao futebol para justificar erros e acertos é dar de bico no santo.)
O que seguiu-se foi o natural ódio e rancor da torcida contra tais jogadores, contra o clube, contra os dirigentes, contra o quero-quero da goleira norte, e, não menos importante, contra evangélicos, missas e (pasmem!) contra o próprio Homem, o tal Cristo. Eu, inserido no meio, e cobrindo a situação de modo jornalístico, não mais passional, tirei conclusões óbvias. Torcedores são acéfalos, horda que se movimenta em ondas e junto ao rebanho que veste a mesma camisa. Da alegria à revolta em questão de minutos. Não existe discernimento nessa polifonia de emoções. Já em vias de formatura, elaborando meu trabalho de conclusão de curso em cima deste assunto, tentei colóquios com o alto clero do jornalismo desportivo rio-grandense. Pouco sucesso. O Santana falava de ereções e prostitutas (ainda não havia Viagra na época), completamente fora de si. Voltando. Padres e pastores então tentavam acalmar seus rebanhos mais exaltados. Colocaram fogo até em cruzes de madeira, em encontros das torcidas organizadas (sempre elas...). Os domingos se tornaram paradoxos que nem Marx compreenderia: fé e louvor pela manhã, nas igrejas; gritos blasfemos e possessões à tarde, nos estádios. Marquinho, líder da torcida Jovem, foi visto num batuque do Morro Santa Tereza. Casas de orixás da Voluntários tiveram acréscimo na venda de estátuas de Exu. Tudo para correr com aquele mal que contaminava o time, chamado “Atletas de Cristo”.
Um dos jogadores que fazia apologia ao cristianismo atlético, na época, era um menino de nome K, “a gazela evangélica do Morumbi”. Bom de bola, o garoto. Porém, a cada gol, levantava os dois indicadores ao céu e, com cara de adoração humilde, orava “obrigado, papai do céu, pelo gol. Obrigado Deus por meu pai ter me alimentado com sustagem, ovomaltine (cada lata custava uma fortuna), por ter uma casa com piscina, jardim e carro importado na garagem”, etc. Entretanto, tinha talento (nascido com ele, não comprado), ao contrário das bestas da Azenha que, de tão cristãos no útero materno, nasceram com o dom da derrota. Menos mal para o menino que cultuava o pandeiro, o único a ter sucesso naquele time. 
No ano seguinte uma limpa foi feita, e os mais exaltados cristãos foram corridos do time. Aqui é raça, vivente, sangue nos olho! Mas a vingança divina não tardaria a chegar...

(segue, e sujeito a edições)

sábado, 26 de janeiro de 2013

Chita



Por mais que os microprodutores rurais estejam certos em suas reivindicações, e por mais que o governo diga que investe, investe sim na agricultura familiar, na produção de orgânicos e nos chiqueirinhos de subsistência, mesmo assim, com a palavra honrada do ministro, com cursos de capacitação oferecidas pela EMATER, apoio científico e pesquisa oferecido pela EMBRAPA, e com dezenas de medidas provisórias assinadas, com foices e enxadas erguidas diante do congresso nacional, com músicas e discursos calorosos, com gente humilde pagando fortunas por uma garrafa de água naquele sol escaldante do planalto central, após dias de viagem em ônibus sem ar-condicionado, tudo em nome da luta, tudo em nome do plantio em pequena escala e do alimento saudável, apesar de todo esse movimento em torno da causa, apareceu uma vaca no meio do caminho.
Tomazoni, conduzindo uma carroça, puxado por dois baios, não pode continuar. Ao seu lado esquerdo, uma ribanceira de dar medo. À direita, um gigantesco paredão de pedra, com galhos e cipós tentando fugir da dureza mineral. Estrada interditada, acidente na pista, obras a duzentos metros, a placa da concessionária não falava nada sobre vacas no meio do caminho. É culpa do governo, estas licitações mal fiscalizadas. PEDÁGIO A 1.000 METROS.
Uma vaca no meio da estrada de chão. E já não se pagam impostos suficientes?! Mais essa agora... Uma vaca. Poderia voltar, quem sabe? Olhar para trás, meia volta, retornar. Nunca! Em frente, sempre em frente, pro diabo quem desiste, porca madona! Tomazoni não se mixava por pouco. Uma vaca. Mascando capim, olhando com arrogância. E, atrás da vaca, com masculino ar de superioridade, impondo chifres ao céu e autoridade de território ocupado, nenhum boi.
Abandonou a carroça, os cavalos, toda a carga de produtos perecíveis de origem 100% orgânica, e subiu por um cipó. Único caminho digno. Poderia ter levado um tomate, poderia, mas... Já que não se vai por terra, é por transporte aéreo mesmo. Calejando a palma, cortando polegares, armazenando seiva sob a unha, rasgando o rosto, coçando a pele. Foi assobiando “Sad but True”, do Metallica, e a taxa de embarque era uma mentira bem contada. Por quem, isso já não se sabe. Força nos braços. Só a roupa do corpo e uma bolsa de couro cru, estonada, nenhum excesso de bagagem.
No fim do cipó, um tronco grosso. Podia-se construir uma casa nele. Firme, indiferente. E a vaca mascando capim, soprando cuspe, tentando uma bola Ploc sabor tutti-frutti, olhando o anão com pálpebras de interrogação, analisando de modo campeiro aquela realidade diminuta (lá no casebre ao longe, fumacinha saindo do telhado e arroz-carreteiro no fogão à lenha). Nada menos do que dezessete borrachudos trouxeram cataporas esporádicas pelos calcanhares e pescoço. Foi acusado de sarampo. Outros o acusaram de lepra (e coisas piores). Mantido em quarentena, julgado, convocado a prestar esclarecimentos no castelo. Como já fora herói, prestando importantes serviços militares, teve o caso arquivado e liberado. O processo correu mais rápido do que o Green Card do John Lennon.
Para Tomazoni, aquela vaca intencionava compor uma bossa-nova new millenium onde cantaria que "isso não vai em mim, não vai em mim, não vai". Algo despreocupado e bunitim, sem diarreias e impactações, que cantasse essa nova alegria do povo, onde "aaaaaaa felicidade quando empresta vem à mesa, com tela plãããã-naaaaaa". Zen cristão neopentecostal, nossa alegria, em casa, lar doce lar, sofazim, comigo assim tranquilo e só comigo, só comigo, só eu, só meu umbigo comigo, agora. Tomazoni intencionava um costelão doze horas, e leite para a horta de radicci.
Voltando. Em meio aos cipós e ramagens e galhos que guardam folhagens e espinhos, às vezes, e sem falar das formigas e lacraias, cabeludos e larvas, e esporos e fungos e doenças da pele vegetal, verrugas que creme nenhum pode curar, desbrava um declive sem terra de volta ao chão, solito e sem bagagem, por trás da vaca, diante do rabo abanador, onde não existe queixa ou desagrado, submundo dos carrapatos inalcançáveis, no anti-tumulto social desta geração (aqui e agora nada acontece, nada acontece). Eis que surge um macaco, quase invisível, modesto em seus gestos de autopromoção, coçar do pelo com finalidade de antimerchandising pessoal, enfim: quieto. Logo tomaram amizade: Tomazoni e o macaco nu. A metáfora de Gaia em formato corpóreo. O sol indiferente se escondia entre as nuvens (e foi quando soprou um vento gelado). O macaco amigo tentava arrancar as bolachas Maria da gibeira de Tomazoni, não tinha escrúpulos.
Uma vaca no meio do caminho. Uma vaca atrás de Tomazoni, que caminhava tranquilo de mãos dadas com o macaco.