Corria o ano de 1999. O
time da Azenha sofria um natural processo de reformulação da equipe, após os
gloriosos anos em que ganhara a Libertadores, duas Copas do Brasil e o campeonato brasileiro. Bons jogadores haviam saído, outros chegaram e, não
aprovando, foram embora. Um, em especial, se tornaria grande craque, mas não é
sobre esse personagem que vou falar. Poderes aquém à minha vontade exigem que a
história seja contada sobre um novo ângulo. A memória deve ser perpetuada para que
não se repita a desgraça no futuro.
A Providência quis
escrever em linhas tortas a pena que não borrava a correta escrita.
Esta é a triste
história que narra a queda. A não menos sensacionalista história que narra como
os deuses do Olimpo, altíssimos em seu júbilo e poder, empurraram uma esquadra imortal
nos desfiladeiros de Termópilas.
Voltamos para 1999.
Brilhava um rapaz de pouca idade, com dribles desconcertantes e gols, muitos
gols. Na partida final do torneio estadual, eu mesmo pulei o fosso que separa
campo da torcida para carregá-lo nos braços, após a conquista do campeonato. O
destino traçava novos troféus e glórias. Porém, chora Athena, chora Apolo e
também o próprio Zeus. Quatro jogadores do grupo se autodenominavam “Atletas de
Cristo”, sendo que este Cristo em questão era Jesus, o filho de Deus, também
chamado Arquiteto do Universo, e não o treinador da equipe, que poderia se
chamar Otacílio Cristo, portanto os jogadores seriam seus atletas, os “atletas
do Otacílio”, nada mais lógico, ou mesmo poderia ser o presidente da
agremiação, que, não menos estranho, poderia se chamar Luis Carlos Cristo, e,
portanto, os jogadores, em respeito à hierarquia, se autodenominariam “atletas
do presidente”, não. Cristo era Jesus. Ponto.
Tais “atletas de
Cristo”, apesar de rezarem bastante (pois eu tinha acesso aos treinamentos e
era comum à estes desportistas a exaltação de sua fé), não eram os melhores
jogadores do Brasil (longe disso). Romário fazia gols e só abria os braços. O
craque anteriormente citado cultuava um pandeiro, e louvava pagodes nas festas
de comemoração. Nada mais válido aqui do que aquele velho lugar-comum de que
“se isso adiantasse, o campeonato baiano terminava empatado”. E como eram
ruins... Uvas! Perebas. Nenhum santo óleo do senhor (9,90 cada frasco, na
época), nem tampouco longas sessões de descarrego (às sextas, a partir das 22
hrs) colocariam aqueles “pés de cristo” na forma, não acertariam seus passes,
não colocaria a pelota na gaveta. Qualquer carrinho dado por estes sujeitos era
uma guerra santa, qualquer bola perdida era “em nome do senhor”, mesmo que o
erro causasse gol do adversário. E causava. E a maionese da tia Carmem começou
a desandar quando os gols escassearam, quando as derrotas se acumularam. A gota
“d’alga” (como dizia minha bisavó Clementina) foi quando um desses atletas
disse, nos microfones da Rádio Caiçara AM de Campo Bom, e eu escutei muito bem,
com sobriedade jornalística (cursava então o último ano de jornalismo), sentado
na varanda da minha casa, no morro Cantagalo, o seguinte: (abre aspas) A
vitória não veio porque Deus não quis! (fecha aspas). Há testemunhas que
ouviram o mesmo. Muitas, te digo. E a notícia se espalhou como onda de
Poseidon. Ainda que suado do esforço na partida, ainda que cansado do jogo,
talvez um pouco fora de si (uma cabeçada meio forte no segundo tempo mas, vá
lá! Nem tinha sido grave!), nada lhe dava motivos para botar a culpa em Deus.
NADA! Esta pérola poderia ser borracheada dos anais do futebol. Meu amigo, eu
te pergunto: pra que o infeliz foi cagar uma blasfêmia destas?
(Adendo: Futebol e
religião, duas paixões nacionais. Futebol e religião não se discutem. Misturar
religião ao futebol para justificar erros e acertos é dar de bico no santo.)
O que seguiu-se foi o
natural ódio e rancor da torcida contra tais jogadores, contra o clube, contra
os dirigentes, contra o quero-quero da goleira norte, e, não menos importante,
contra evangélicos, missas e (pasmem!) contra o próprio Homem, o tal Cristo.
Eu, inserido no meio, e cobrindo a situação de modo jornalístico, não mais
passional, tirei conclusões óbvias. Torcedores são acéfalos, horda que se
movimenta em ondas e junto ao rebanho que veste a mesma camisa. Da alegria à
revolta em questão de minutos. Não existe discernimento nessa polifonia de
emoções. Já em vias de formatura, elaborando meu trabalho de conclusão de curso
em cima deste assunto, tentei colóquios com o alto clero do jornalismo
desportivo rio-grandense. Pouco sucesso. O Santana falava de ereções e
prostitutas (ainda não havia Viagra na época), completamente fora de si.
Voltando. Padres e pastores então tentavam acalmar seus rebanhos mais
exaltados. Colocaram fogo até em cruzes de madeira, em encontros das torcidas
organizadas (sempre elas...). Os domingos se tornaram paradoxos que nem Marx
compreenderia: fé e louvor pela manhã, nas igrejas; gritos blasfemos e possessões
à tarde, nos estádios. Marquinho, líder da torcida Jovem, foi visto num batuque
do Morro Santa Tereza. Casas de orixás da Voluntários tiveram acréscimo na
venda de estátuas de Exu. Tudo para correr com aquele mal que contaminava o
time, chamado “Atletas de Cristo”.
Um dos jogadores que
fazia apologia ao cristianismo atlético, na época, era um menino de nome K, “a
gazela evangélica do Morumbi”. Bom de bola, o garoto. Porém, a cada gol,
levantava os dois indicadores ao céu e, com cara de adoração humilde, orava “obrigado,
papai do céu, pelo gol. Obrigado Deus por meu pai ter me alimentado com
sustagem, ovomaltine (cada lata custava uma fortuna), por ter uma casa com
piscina, jardim e carro importado na garagem”, etc. Entretanto, tinha talento
(nascido com ele, não comprado), ao contrário das bestas da Azenha que, de tão
cristãos no útero materno, nasceram com o dom da derrota. Menos mal para o
menino que cultuava o pandeiro, o único a ter sucesso naquele time.
No ano seguinte uma limpa foi feita, e os mais exaltados cristãos foram corridos do time. Aqui é raça, vivente, sangue nos olho! Mas a vingança divina não tardaria a chegar...
(segue, e sujeito a edições)