terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Morro Cantagalo e mais além

Corria o ano de 1999. O time da Azenha sofria um natural processo de reformulação da equipe, após os gloriosos anos em que ganhara a Libertadores, duas Copas do Brasil e o campeonato brasileiro. Bons jogadores haviam saído, outros chegaram e, não aprovando, foram embora. Um, em especial, se tornaria grande craque, mas não é sobre esse personagem que vou falar. Poderes aquém à minha vontade exigem que a história seja contada sobre um novo ângulo. A memória deve ser perpetuada para que não se repita a desgraça no futuro.
A Providência quis escrever em linhas tortas a pena que não borrava a correta escrita.
Esta é a triste história que narra a queda. A não menos sensacionalista história que narra como os deuses do Olimpo, altíssimos em seu júbilo e poder, empurraram uma esquadra imortal nos desfiladeiros de Termópilas.
Voltamos para 1999. Brilhava um rapaz de pouca idade, com dribles desconcertantes e gols, muitos gols. Na partida final do torneio estadual, eu mesmo pulei o fosso que separa campo da torcida para carregá-lo nos braços, após a conquista do campeonato. O destino traçava novos troféus e glórias. Porém, chora Athena, chora Apolo e também o próprio Zeus. Quatro jogadores do grupo se autodenominavam “Atletas de Cristo”, sendo que este Cristo em questão era Jesus, o filho de Deus, também chamado Arquiteto do Universo, e não o treinador da equipe, que poderia se chamar Otacílio Cristo, portanto os jogadores seriam seus atletas, os “atletas do Otacílio”, nada mais lógico, ou mesmo poderia ser o presidente da agremiação, que, não menos estranho, poderia se chamar Luis Carlos Cristo, e, portanto, os jogadores, em respeito à hierarquia, se autodenominariam “atletas do presidente”, não. Cristo era Jesus. Ponto.
Tais “atletas de Cristo”, apesar de rezarem bastante (pois eu tinha acesso aos treinamentos e era comum à estes desportistas a exaltação de sua fé), não eram os melhores jogadores do Brasil (longe disso). Romário fazia gols e só abria os braços. O craque anteriormente citado cultuava um pandeiro, e louvava pagodes nas festas de comemoração. Nada mais válido aqui do que aquele velho lugar-comum de que “se isso adiantasse, o campeonato baiano terminava empatado”. E como eram ruins... Uvas! Perebas. Nenhum santo óleo do senhor (9,90 cada frasco, na época), nem tampouco longas sessões de descarrego (às sextas, a partir das 22 hrs) colocariam aqueles “pés de cristo” na forma, não acertariam seus passes, não colocaria a pelota na gaveta. Qualquer carrinho dado por estes sujeitos era uma guerra santa, qualquer bola perdida era “em nome do senhor”, mesmo que o erro causasse gol do adversário. E causava. E a maionese da tia Carmem começou a desandar quando os gols escassearam, quando as derrotas se acumularam. A gota “d’alga” (como dizia minha bisavó Clementina) foi quando um desses atletas disse, nos microfones da Rádio Caiçara AM de Campo Bom, e eu escutei muito bem, com sobriedade jornalística (cursava então o último ano de jornalismo), sentado na varanda da minha casa, no morro Cantagalo, o seguinte: (abre aspas) A vitória não veio porque Deus não quis! (fecha aspas). Há testemunhas que ouviram o mesmo. Muitas, te digo. E a notícia se espalhou como onda de Poseidon. Ainda que suado do esforço na partida, ainda que cansado do jogo, talvez um pouco fora de si (uma cabeçada meio forte no segundo tempo mas, vá lá! Nem tinha sido grave!), nada lhe dava motivos para botar a culpa em Deus. NADA! Esta pérola poderia ser borracheada dos anais do futebol. Meu amigo, eu te pergunto: pra que o infeliz foi cagar uma blasfêmia destas?
(Adendo: Futebol e religião, duas paixões nacionais. Futebol e religião não se discutem. Misturar religião ao futebol para justificar erros e acertos é dar de bico no santo.)
O que seguiu-se foi o natural ódio e rancor da torcida contra tais jogadores, contra o clube, contra os dirigentes, contra o quero-quero da goleira norte, e, não menos importante, contra evangélicos, missas e (pasmem!) contra o próprio Homem, o tal Cristo. Eu, inserido no meio, e cobrindo a situação de modo jornalístico, não mais passional, tirei conclusões óbvias. Torcedores são acéfalos, horda que se movimenta em ondas e junto ao rebanho que veste a mesma camisa. Da alegria à revolta em questão de minutos. Não existe discernimento nessa polifonia de emoções. Já em vias de formatura, elaborando meu trabalho de conclusão de curso em cima deste assunto, tentei colóquios com o alto clero do jornalismo desportivo rio-grandense. Pouco sucesso. O Santana falava de ereções e prostitutas (ainda não havia Viagra na época), completamente fora de si. Voltando. Padres e pastores então tentavam acalmar seus rebanhos mais exaltados. Colocaram fogo até em cruzes de madeira, em encontros das torcidas organizadas (sempre elas...). Os domingos se tornaram paradoxos que nem Marx compreenderia: fé e louvor pela manhã, nas igrejas; gritos blasfemos e possessões à tarde, nos estádios. Marquinho, líder da torcida Jovem, foi visto num batuque do Morro Santa Tereza. Casas de orixás da Voluntários tiveram acréscimo na venda de estátuas de Exu. Tudo para correr com aquele mal que contaminava o time, chamado “Atletas de Cristo”.
Um dos jogadores que fazia apologia ao cristianismo atlético, na época, era um menino de nome K, “a gazela evangélica do Morumbi”. Bom de bola, o garoto. Porém, a cada gol, levantava os dois indicadores ao céu e, com cara de adoração humilde, orava “obrigado, papai do céu, pelo gol. Obrigado Deus por meu pai ter me alimentado com sustagem, ovomaltine (cada lata custava uma fortuna), por ter uma casa com piscina, jardim e carro importado na garagem”, etc. Entretanto, tinha talento (nascido com ele, não comprado), ao contrário das bestas da Azenha que, de tão cristãos no útero materno, nasceram com o dom da derrota. Menos mal para o menino que cultuava o pandeiro, o único a ter sucesso naquele time. 
No ano seguinte uma limpa foi feita, e os mais exaltados cristãos foram corridos do time. Aqui é raça, vivente, sangue nos olho! Mas a vingança divina não tardaria a chegar...

(segue, e sujeito a edições)